“Graças a Deus”. Imagina ter que fazer esse agradecimento todos os dias por não ter sido chamado de “preto fedido”, “cabelo pixaim”, “nojento”, “sujo” ou outros inúmeros termos racistas e discriminatórios que existem. Parece absurdo ler todos esses xingamentos juntos, e bastante incômodo, ainda mais quando são direcionados a um ser humano, mas essa é a realidade da maior parte do povo negro.
Em uma tentativa de trazer reflexão para o Dia da Consciência Negra, celebrado nesta segunda-feira (20), e de fomentar o combate ao racismo, a Reportagem foi às ruas conversar com a população que lida com esse crime diariamente.
Vanildo da Silva, que trabalha como vendedor em um ponto de ônibus localizado na Avenida Historiador Rubens de Mendonça, a Avenida do CPA, contou que presencia cenas de racismo todos os dias, que vão desde discussões até mesmo a agressões. “Todo dia tem uma situação aqui no ponto e hoje em dia é difícil buscar ajuda, todo mundo fica com medo de denunciar”, avalia.
Inseridas no cotidiano há séculos, episódios de racismo geram traumas e são quase impossíveis de esquecer. É o exemplo de Adelaide Ferreira, que guarda até hoje a lembrança de um episódio de discriminação ocorrido anos atrás. “Eu tava em um ponto de ônibus, quando chegou uma senhora e falou bem assim pra mim ‘você pode afastar’, aí eu falei ‘pede por favor, com licença’, nisso ela respondeu: ‘além de ser preta ainda é moagenta’ e foi embora”.
O peso do racismo deixou marcas profundas em Adelaide, que conta com pesar sobre o ocorrido. “Aquilo chega a doer, né… Eu fico revoltada, sinceramente. É uma coisa que ninguém pediu para ter cor e nem para ter diferença, porque se furar o dedo, o sangue é um só. Eu acho que não tem diferença nenhuma, só tem ignorância”.
A discriminação racial não se limita às ruas, pode ser detectada em todos os ambientes, desde o trabalho ou até em casa.
“Eu estava no caixa, que era dividido entre duas pessoas, quando o patrão me chamou de ‘negra feia’ porque tinha faltado dinheiro no caixa”, relata a jovem Ana Paula de Lima.
Em um outro momento, ainda no trabalho, ela chegou a ser dispensada após levantar a hipótese de uma desigualdade racial por conta do cabelo black power.
“Em outro mercado, eu usava aqueles acessórios de cabelo, mas não tinha como eu amarrar. Eu falei para o fiscal que meu cabelo não parava e mesmo assim ele queria que eu arrumasse. Porém, tinha outra menina que era branca de cabelo liso e ficava com ele solto. Eu perguntei pra ele ‘então ela pode ficar com o cabelo solto e a negra aqui tem que amarrar?’ Aí o RH veio tentando apaziguar a situação. Dois meses depois, eu fui mandada embora”.
Ao ser perguntada sobre como reagiu ao passar por essas situações, Ana Paula releva que episódios como este acabam se tornando “normal” para ela. “Eu fico quieta, me sinto oprimida, acaba sendo normal. O pessoal fala pra relevar porque a gente já é pobre, aí tem que pagar advogado, a gente fica meio acuado”.
Já é difícil lidar com isso na rua e no trabalho, agora imagina ter que enfrentar o racismo dentro de casa, com a própria família. “As pessoas ficam fazendo piadinha com a cor da pele porque eu tenho irmão que é branco e eu já saí negra. A gente vê esse tipo de coisa com a própria família”, disse a moradora Gleide Ferreira.
Ela também afirmou: “quando é com os outros na rua, você já sente, mas quando é na família é ainda pior, pesa mais”.
Além disso, assim como o vendedor Vanildo, quando a história não acontece contigo, ela se repete com um colega de trabalho, amigo ou até vizinho.
“Eu vi acontecer com a minha vizinha, em um ponto de ônibus. Foi muito triste mesmo. A pessoa xingou, chamou ela de macaca, de preta safada, fedida. Ela entrou no ônibus chorando, fomos na delegacia, mas ela não quis dar parte, preferiu deixar nas mãos de Deus”, relatou Mariluci Santos.
Nesse momento, algumas pessoas ainda se perguntam sobre o porquê ter o Dia da Consciência Negra, datado em 20 de novembro, talvez, trazendo todas essas histórias juntas seja possível compreender. A data não representa mais um feriado, mas sim uma luta, uma causa, uma busca por defesa de direitos e igualdade, além de ser símbolo de resistência, força e superação.